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O escritor dos afectos estaria completando 98 anos

  • Da redação
  • 2 de fev.
  • 10 min de leitura

O escritor dos afectos, que tanto exaltou o nome da Covilhã e da Serra da Estrela em seus escritos, António Alçada Baptista, teria completado 98 anos em janeiro. Muitos dos seus romances, crónicas ou ensaios traziam marcadas as paisagens serranas, as relações familiares, a sua infância feliz. Textos estes sustentados em episódios da sua própria vida, em reflexões e interrogações que inseria num quadro de pensamento, reflexo natural da transformação de mentalidades sentida na sociedade portuguesa especialmente da década de 60 e 70, época de ebulições culturais e políticas.


Sobre Alçada é possível dizer que a vida foi uma das suas grandes obras e, através da obra escrita, exprimiu isso de forma única. A sua mensagem está tão presente e a sua obra será sempre actual. Singular, mas não solitário, a vida não lhe passou ao lado. A memória do saudoso convívio e o testemunho que deixou nas diversas obras publicadas avivam a lembrança.


Pesca à Linha é um livro para sempre a voltar a ler. Nele, Alçada evoca os marcos da sua história pessoal e do seu tempo, a sua “teia de afectos”, as “cumplicidades”, os “queridos amigos”. Embrenhou-se, desde jovem, no convívio das tertúlias de Lisboa, onde encontrou uma cultura subjacente e um diálogo social. Tal como refere, as pessoas e as relações humanas estão no centro de tudo e “quando a gente anda metido com vida como eu andei, acaba por ter nos braços uma multidão de coisas, de acontecimentos e emoções...”.


Nascido na Travessa da Barbacã, na Covilhã, a 29 de janeiro de 1927, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa (1950) e manteve-se sempre ligado à escrita como diretor ou colaborador de várias revistas e jornais, tendo ainda participado em programas de televisão e de rádio. Foi presidente do Instituto Português do Livro. Oficial da Ordem de Santiago, recebeu a Ordem Militar de Cristo (1983) e a Grã-Cruz da Ordem do Infante (1995). António Alçada Baptista faleceu a 7 de dezembro de 2008, em Lisboa.


Profundamente influenciado pelo Cristianismo de pensadores como Emmanuel Mounier e Teillard de Chardin, conseguiu obter com os dois volumes de "Peregrinação Interior" a unanimidade da crítica e do público. Enquanto ficcionista, publicou "Os Nós e os Laços" (1985), "Catarina ou o Sabor da Maçã" (1988), "Tia Suzana, Meu Amor" (1989), "O Riso de Deus" (1994) e "Pesca à Linha - Algumas Memórias" (1998). Como cronista e defensor da liberdade Alçada Baptista publicou em outubro de 2002 "Um Olhar à Nossa Volta", o testemunho de uma vivência coletiva registada na década de 70 e 80 marcada por inquietações político-sociais.


Alçada enquadrava-se, segundo o próprio, entre os raros escritores que não tinham “vergonha dos afetos”: “A minha obra escrita vende-se muito por uma razão simples, porque eu sou talvez o primeiro escritor que não teve vergonha dos afetos”, disse um dia o escritor sobre a sua obra que percorreu o ensaio, crónica, novela e o romance.


Segundo a escritora Helena Pato, Alçada era um homem multifacetado. Advogado, escritor, jornalista e editor, estava ligado aos chamados católicos progressistas e, desde jovem – fruto de sua formação educacional junto aos jesuítas – , teve um papel importante nos grandes combates contra a ditadura fascista. Em 1961, foi candidato em Castelo Branco na lista da Oposição e, em 1969, na lista da CDE. Foi advogado de defesa de presos políticos nos Tribunais Plenários.


“As grandes causas que defendeu e praticou, da cultura à intervenção política e cívica, envolveram também as relações humanas, a amizade. A ‘aventura da Morais’ (editora que dirigiu e foi proprietário) e o militantismo cultural no Centro Nacional de Cultura são disso exemplo”, escreve Helena Pato. Ao longo da vida, Alçada foi encontrando afinidades, tecendo a sua teia de cumplicidades e formando a sua tribo. Fez pontes com territórios humanos muito diversos e ligou margens aparentemente impossíveis. A liberdade foi sempre um valor inegociável e as pessoas uma condição da própria existência e realização pessoal e social.


Em 1963, fundou, e dirigiu, até 1969, a revista O Tempo e o Modo, cujo corpo redactorial era maioritariamente constituído por católicos contestatários da relação entre a Igreja e o Estado Novo, mas também por democratas de outros sectores de esquerda. Foi um dos signatários do manifesto católico de apoio às posições da oposição democrática que ficou conhecido por «Manifesto dos 101». Entre 1971 e 1974, foi assessor para a Cultura do então ministro da Educação Nacional, Veiga Simão.


Brasil, França e suas amizades

A sua dedicação à cultura da língua portuguesa valeu-lhe a indigitação para adido cultural de Portugal no Brasil. Dos humanistas e intelectuais que moldaram a sua formação e o convívio, valorizava sempre mais a dimensão humana do que as ideias em abstracto, como no caso de Vitorino Nemésio que “sabia muitas coisas, mas, para mim, daquilo que tenho mais saudades é da sua presença afectuosa que fazia de todo o seu convívio, diria de toda a sua vida, um espaço e um tempo qualificado”.


Do mesmo modo, sobre o amigo Jorge Amado, além de grande escritor, dizia que destacava-se, sobretudo, como “um dos poucos homens que se enternecem com a condição humana”. Sobre o poeta Alexandre O’Neill, um dos amigos referenciais, que “escreveu todos os poemas que gostaria de ter escrito”, revela: “tínhamos muitas afinidades e a principal era a de não nos levarmos a sério”.


“Amava intensamente as pessoas, e por isso mesmo o Brasil, lugar que faz parte da sua sobrevivência”, escreveu Guilherme d’Oliveira Martins. “Não tanto como escritor, mas como homem que procurava ter uma relação com a vida na serenidade, na alegria, na paz para que fomos criados”. Alçada costumava dizer: “tenho a certeza que Kierkegaard não teria escrito O Desespero Humano se tivesse nascido na Bahia, nem o Jorge Amado o Quincas Berro d’Água se fosse dinamarquês”.


Neste relacionamento, feito de muitas idas ao Brasil e de acolhimento dos brasileiros em Lisboa, diversas foram as figuras e os amigos, desde Odylo Costa Filho a Jorge Amado, passando por perfis tão diversos como Rute Escobar, D. Helder Câmara ou José Aparecido de Oliveira. Se o Rio de Janeiro era a cidade de eleição, “uma cidade feita para mim”, como fez questão de escrever, em São Paulo tinha muitos amigos, e São Salvador da Baía era a terra de Jorge Amado e de Caribé.


O reconhecimento da intelectualidade brasileira foi notório com a sua entrada na Academia Brasileira de Letras como sócio-correspondente. “Era igualmente vibrante o convívio com os brasileiros da cena artística e da vida diplomática que passavam por Lisboa e muito especial o carinho com que os guiava na visita às terras beirãs de Pedro Álvares Cabral, especialmente à Covilhã e a Belmonte”, definiu a historiadora Maria Calado.


Alçada também era amigo do sociólogo francês Edgar Morin, que guarda dele boas lembranças. “Em António irradiava o espírito de liberdade. Publicou a única revista gratuita, que navegava como uma caravela num mar hostil, e onde inúmeras páginas em branco sinalizavam o controle obscurantista da censura: O tempo o modo, sempre ameaçado, sempre voltando à batalha”, escreveu Morin em um recente depoimento sobre o amigo, com quem dividiu cafés e ruas na Paris efervescente das décadas de 60 e 70.

 

Refúgio na Serra da Estrela

Alçada construiu um chalé encravado na Serra da Estrela, na Covilhã, para descansar e conviver com amigos e familiares. Uma de suas visitas foi o amigo escritor Jorge Amado e sua esposa Zélia Gattai. O chalé também recebeu outros ilustres amigos do autor, como o escritor português José Cardoso Pires, que no local escreveu um de seus livros.


A Casa da Ribeira, como ele mesmo a nomeou, é um chalé de granito, construído na década de 1960. Inspirado por seu avô, o primeiro a construir uma casa na Serra da Estrela, e por seu pai, ex-presidente da Câmara da Covilhã, Alçada criou este refúgio literário sobre uma cascata de água, cercado por uma deslumbrante paisagem natural. No chalé de madeira encostado nas pedras, ele encontrou inspiração para escrever seu primeiro livro, "Peregrinação Interior Vol. 1".



“Covilhã é minha infância. E nós estamos sempre a nascer, como os rios”


Leia abaixo partes da entrevista concedida à jornalista Anabela Mota Ribeiro e publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 1999.

 

Anabela - Há pouco dizia que os seus livros só ficariam até à geração dos seus netos.

Alçada - Pois. Eu era muito amigo do Alexandre O’Neill. Uma vez estávamos a conversar sobre a razão porque éramos tão amigos, e ele dizia: «É porque a gente não se leva a sério». Tenho consciência de duas coisas. Primeiro, a escrita não é o mais importante. Muitos escritores dizem: «A escrita é a minha razão de viver». Eu digo: «Viver é a minha razão de escrever». A vida interessa-me muito mais que a escrita. Segundo, em cada geração vão três, quatro escritores para a História da Literatura. No tempo do Eça, havia o Teixeira de Vasconcelos, o João Grave, o Abel Botelho, pessoas de quem ninguém fala. Ora, na minha geração já tive o Vitorino Nemésio, o Jorge de Sena, o Vergílio [Ferreira].


Não gostaria de pertencer a esse lote?

Não é a minha preocupação. Não trabalho para o futuro.


Então escreve porquê, o que é que motiva a sua escrita?

A escrita é um meio de investigação. A Salette Tavares, um tempo antes de morrer, disse numa entrevista: «A minha mão direita sabe muito mais do que eu».


Como se a escrita fosse uma sistematização?

É uma descoberta. A minha escrita é muito comunicante. Isso interessa-me. A gente tem de ter uma razão qualquer.


Tem?

Tem de ter um destino. Acho que é pela escrita que posso talvez comunicar alguma coisa daquilo que me interessa.


Há aqui dois planos: o da sua escrita na relação com os outros, e o da escrita na relação consigo e no que ela representa para si.


Uma vez estava a conversar no Brasil e alguém citou o Sartre, «O Inferno são os outros»; o Millôr Fernandes, que é muito meu amigo, disse: «Sim, sim, mas o céu também». Por mais que nos custe, não somos nada sem os outros.


Foi interno para o Colégio de Santo Tirso de castigo?

Íamos todos. Tinha nove anos. No colégio tinha um prefeito que era um sádico.


Não foi talhado para ser padre? Nas famílias da província havia sempre um tio padre.

Nem tanto. Os padres normalmente nunca eram das melhores famílias. A única maneira de promoção era ir para a seminário e fazer-se padre. Depois havia excepções, vocações. Os nossos pais, por mais católicos que fossem, não ficavam muito contentes por ver um filho ir para padre.


O que é que os seus pais queriam que fosse?

Tirei Direito. Na altura só se podia tirar Direito ou Medicina. O meu irmão tirou Arquitectura. Ninguém se formava em Económicas, em Letras.


As Letras destinavam-se às poucas meninas que tiravam cursos superiores. Teve vontade de as estudar?

Tinha, mas nunca pensei em tirar um curso de Letras. Talvez não tivesse coragem para formular isso. Quer dizer, tinha de ir para Direito ou para Medicina. Como não era capaz de ir para Medicina, porque nunca me entendi com a matemática nem com a química, fui para Direito com o qual não tenho rigorosamente nada que ver. E advoguei e ganhei dinheiro a advogar.


Foi o começo da sua vida? Foi assim que sustentou os seus filhos?

Aos 28, 29 fui de uma irresponsabilidade total. Com o meu desejo de salvação do mundo, resolvi deixar de advogar e comprei uma editora para editar os livros de que gostava e que julgava que todas as pessoas estavam ansiosas que aparecessem. Mas como só havia 200 ou 300 pessoas que compravam, acabei por gastar todo o dinheiro que tinha. Foi uma aventura que ainda durou seis anos, ainda deu para perder muito dinheiro.


É assim que olha para a aventura? Foi uma parte importante de si que se realizou ali.

Foi uma boa experiência, e, como digo, resolvi o problema dos meus privilégios. Fiquei curado das grandes culpabilidades que tinha em relação ao mundo.


É mais difícil quando se tem e depois se perde.

Sempre tive um carro barato. O meu único luxo, que é esta casa, veio porque se vendeu um terreno da minha mãe na Covilhã e tive algum dinheiro. De resto, nunca tive assim muito.


Que memórias é que ainda tem da Covilhã?

As da infância. Nós estamos sempre a nascer, como os rios, não é? Outro dia numa conferência na Universidade da Covilhã, lembrei que quando estava na Faculdade éramos 13. Hoje a Universidade da Covilhã tem 4000 alunos. Já é uma outra terra. Mas o meu imaginário de infância está todo ligado à Covilhã.


Foi um imaginário povoado de mulheres?

Sim, tiveram muita importância na minha vida. Eram as avós, as tias, as criadas velhas. Os pais eram a autoridade; não havia ternura da mãe e do pai.


A sua mãe não o encheu de mimos?

Não. O meu pai, que era uma pessoa de grande qualidade humana, tinha essa impossibilidade. Os pais não afagavam um filho.


É uma imagem marcadamente masculina. As mães sempre foram mais doces.

A minha mãe era um bocado autoritária. Mas as tias solteiras e as criadas velhas, a única vez que tinham um corpo nu era o de uma criança. Havia ali uma onda de ternura que foi muito importante. Também não sei se isto não serão construções da minha memória. A minha memória acabou por ser muito selectiva.


Pode esclarecer se o que escreve é um retrato fiel de si ou um retrato ficcionado de si?

Há uma coisa em que sou um mau romancista: é na impossibilidade de escrever coisas que não tenha conseguido viver. Por outro lado, também descrevo coisas da minha experiência imaginada. Se conheço alguém e imagino ter um romance com esse alguém, descrevo-o e não quer dizer que se tenha passado. No «Tia Susana, (meu amor)» toda a gente me perguntava quem era a Tia Susana. Aí senti, de facto, a frase do Flaubert, «Madame Bovary c'est moi».


Sente-se satisfeito da vida que teve?

Estou satisfeito, de uma maneira geral, da minha relação com o próximo (das pessoas com quem me dei e me dou). Não desgosto dos meus livros, acho que são testemunho de uma mentalidade e de uma época, e parece-me que fui o único que seguiu esse caminho.


As suas marcas são a transcendência e a mulher.

O amor e a transcendência. Por mais que faca, não consigo sair daqui. Os meus livros, não me envergonho deles, mas também mão acho que sejam assim uma coisa espectacular. Não tenho ambições literárias. O importante é que as pessoas que estão perto tenham uma boa imagem de mim, que não as magoe, não as fira.

 

Obras do autor

1970 -Documentos Políticos (crónicas e ensaios)

1971 -Peregrinação Interior I - Reflexões sobre Deus

1973 -O Tempo nas Palavras

1973 -Conversas com Marcello Caetano

1982 -Peregrinação Interior II - O Anjo da Esperança

1984 - Uma vida melhor

1985 -Os Nós e os Laços (romance)

1988 -Catarina ou a Sabor da Maçã

1989 -Tia Suzana, Meu Amor(romance)

1994 -O Riso de Deus (romance)

1998 -A Pesca À Linha, Algumas Memórias

1999 -O Tecido do Outono (romance)

2002 - Um olhar à nossa volta

2003 -A Cor dos Dias






Jorge Amado, Alçada, Zélia Gattai e familiares em foto do final da década de 60, na Serra da Estrela
Jorge Amado, Alçada, Zélia Gattai e familiares em foto do final da década de 60, na Serra da Estrela

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