top of page

Ainda guardo renitente um velho cravo para mim

  • Foto do escritor: Thais Marçon
    Thais Marçon
  • 1 de fev.
  • 4 min de leitura

Sou uma brasileira vivendo em terras beirãs. Escolhi Portugal como casa, mas carrego comigo referências e experiências sobre cultura e sua gestão. E, se há algo em que acredito, tanto pessoal quanto profissionalmente, é no potencial transformador da cultura. Em tempos de radicalização política e discursos intolerantes, pode soar ingênuo afirmar isso, mas não vejo outra saída. Se a realidade nos empurra para o desalento, a cultura nos puxa de volta para a possibilidade. Posso seguir no caminho da utopia. É quem carrega o ódio que odeia a cultura (ou a sua pluralidade).


“Num jornal do bairro do Raval, em Barcelona, uma mão anônima escreveu: O teu deus é judeu, a tua música é negra, o teu carro é japonês, a tua pizza é italiana, o teu gás é argelino, o teu café é brasileiro, a tua democracia é grega, os teus números são árabes, as tuas letras são latinas. Eu sou teu vizinho. E ainda me chamas estrangeiro?”


O poema de Eduardo Galeano desmonta qualquer ideia de isolamento cultural e nos lembra que a identidade de um povo é sempre o resultado de encontros, trocas e influências. Não há cultura isolada. No entanto, é justamente a cultura que se torna um dos primeiros alvos quando se busca impor um pensamento único. E não é por acaso.


O recente barómetro da Imigração, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, revela que, em Portugal, cresce o sentimento de rejeição à imigração. Embora os imigrantes sejam essenciais para a economia e a sustentabilidade demográfica do país, ainda há quem os veja como uma ameaça. Essa hostilidade ignora o óbvio ululante: já somos corpos estrangeiros, produzindo e multiplicando cultura aqui, amalgamando-nos à cultura local e criando novas formas de pertencimento. E essa relação não é nova. Ela é histórica, de cinco séculos. O que mudou é o contexto: agora, ela ocorre nos solos do Norte Global. Estamos aqui e agora. Tocamos nas rádios, formamos novas famílias, estamos nos livros, nas revistas, nas ruas, nos campos. Não é só a Tieta na TV.


Por isso, reconhecer essa interculturalidade exige mais do que discursos vazios sobre diversidade. É preciso políticas públicas culturais que vão além da manutenção de equipamentos e eventos esporádicos. É necessário ampliar vozes, descentralizar recursos (há vida além de Porto e Lisboa!) e enxergar a cultura como direito humano e ferramenta essencial para a democracia e para o desenvolvimento social.


Que fique claro: isso não é uma coluna sobre política, mas sobre cultura. Ou será que é possível desassociá-las? Em tempos de crises ministeriais, com imbróglios mil na pasta da Cultura, em um país com um interior desertificado e tensões político-sociais crescentes, a cultura precisa ser tratada como questão pública fundamental. Para além do desafio dos orçamentos historicamente irrisórios (e, infelizmente, isso é quase universal), é possível agir concretamente.


O Brasil nos oferece um exemplo valioso. Quando Gilberto Gil foi Ministro da Cultura (2003-2008), compreendeu que a cultura deveria ser vista em três dimensões: simbólica (expressão e identidade, reconhecendo seu caráter antropológico), econômica (geração de riqueza e emprego) e cidadã (um direito fundamental - como saúde, pão e habitação). Seu trabalho não se limitou a preservar patrimônios ou financiar grandes eventos, mas a fortalecer a produção cultural das periferias, das comunidades tradicionais, dos povos ancestrais e dos coletivos independentes. Não antagonizou o mercado: manteve políticas de incentivo tributário, financiadas pelo setor privado e parcerias público-privadas, porque, sim, não há dinheiro para tudo. Mas deixou a cargo do Estado expandir o acesso para além dos grandes centros urbanos e olhar para aqueles que não conseguiriam acessar esses mecanismos. E, talvez mais importante, criou o Sistema Nacional de Cultura, uma experiência de gestão participativa que estabeleceu metas autárquicas, distritais e nacionais, traçadas por diferentes vozes, diferentes pessoas. Não se tratava apenas de recursos, mas de dar espaço para que todos os cidadãos e culturas tivessem voz.


Em um país como Portugal, diverso apesar de geograficamente pequeno, tanto os saberes tradicionais de suas terras quanto as novas manifestações culturais trazidas por quem chega, bem como pelas chamadas zonas periféricas ou não-hegemônicas, merecem ser valorizados.


Aceitar essa pluralidade não significa desvalorizar culturas e valores preexistentes, nem enfraquecer identidades locais. Pelo contrário, trata-se de reconhecer que as culturas não competem entre si, mas coexistem se há integração — ou deveriam. Para isso, é fundamental adotar uma visão decolonial, que nos convida a repensar os padrões de pensamento que, historicamente, impuseram uma ordem onde algumas culturas são vistas como superiores a outras. Em vez de simplesmente aceitar essas hierarquias, desafiar a ideia de que algumas formas de ser e de viver devem se sobrepor às outras. Em outras palavras, criar um espaço onde a lusofonia - e além dela - se organiza de maneira horizontal.


Cultura não é luxo, nem detalhe superficial. É identidade, economia, cidadania. É, sobretudo, resistência. Sem ela, não há democracia que se sustente. E se há algo que precisamos hoje, mais do que nunca, é defender os valores democráticos. E, inexoravelmente com eles, a liberdade de criar, de pensar, de questionar. Porque a cultura não apenas reflete o mundo, ela também tem o poder de transformá-lo.


Por isso, enquanto alguns vivem do ódio ou de uma espécie de “outrofobia”, uso Godinho para sugerir: “Dancemos no mundo” (e pode ser o vira, o bailarico, o samba, o funk, a bharatanātyam, a quizomba ou o balé clássico — fica ao gosto do leitor).


PS: Esta coluna, sendo de uma brazuca, é escrita no português brasileiro.


Thais Marçon, historiadora e activista social.



ความคิดเห็น


bottom of page